No princípio era o verbo

O truque é escutar.
Parece simples, certo? Só que para escutar é preciso garantir um conjunto de condições difíceis de reunir: 
  • Parar de falar - Não opinar, deixar de comentar, resistir a fazer uma piada, a atenuar um momento social desconfortável. Mas alguém consegue falar e ouvir ao mesmo tempo?
  • Abrandar - Praticar a quietude do corpo ajuda à prática da atenção plena (mindfulness) e, consequentemente, a prestar mais atenção ao discurso da nossa mente e estar alerta aos sinais do nosso corpo.
  • Bloquear o ruído - O externo, das cidades, da televisão, das redes sociais. E o interno, a lengalenga da nossa cabeça que alterna frequente e descontroladamente entre questões do passado e preocupações sobre o futuro.
O que acontece quando não falas, ficas quieta e bloqueias o ruído? Acontece o desconforto.
A comichão no cotovelo, a almofada que incomoda nas costas, a tosse, o refrão daquela música em loop, aquele e-mail que não respondeste, a certeza que não vais conseguir relaxar, a irritação. E, quando consegues ultrapassar tudo isto, o "vazio".
No meu caso, exercícios de respiração e algumas músicas ou sons ajudam-me a chegar a este estado que não é fácil de descrever, mas que encerra qualidades que identifico como leveza, equilíbrio e quietude. Não estou abstraída, pelo contrário, estou com os sentidos apurados. Só que, para além da realidade que me rodeia, sinto a energia.

Escutar o quê? 
As opções são várias.

  • Escutar-me a mim mesma -  Imagino um laser a percorrer o meu corpo, dos pés à cabeça, e atento nas sensações físicas. A parte dos meus pés que tocam no chão, o sítio onde as minhas pernas cruzadas encostam, um peso no estômago, uma tensão nos ombros e nos maxilares, as mãos frias. Nos locais onde encontro tensão, respiro fundo até três vezes, inspirando pelo nariz, como se tivesse a insuflar aquela zona e expiro pela boca, visualizando a libertação da tensão. É comum encontrar sensações em locais do corpo - frequentemente no estômago ou na zona pélvica - que são emoções. Encontro muitas vezes ansiedade, medo. Neste caso, foco-me nesse local do corpo e permito-me sentir essa emoção na sua plenitude. Pode ser desafiante entregarmo-nos a emoções difícies, mas tentar fugir não vai resolvê-la, apenas escondê-la. Posso garantir que, de todas as vezes que fiz este exercício, por mais intensa que a emoção possa ficar - e por vezes é mesmo desconfortável - terminei sempre melhor do que quando comecei.
  • Escutar o ambiente - Gosto de fazer isto quando estou na natureza, de olhos fechados, alternando a minha atenção de som em som - o vento na folhagem das árvores, os diferentes sons dos pássaros, passos de alguém a caminhar, o som da água. Também, quando acordo muito cedo e a casa está toda na penumbra e toda a gente a dormir, gosto de escutar os seus sons.
  • Escutar o "Universo" - Lançar uma perguntas e ficar para ouvir a resposta. Pode ser uma pergunta específica a uma questão concreta relacionada com a minha vida pessoal ou profissional, ou algo mais abrangente como "o que preciso de escutar neste momento?". E ficar disponível para ouvir a resposta, que pode surgir de formas distintas - uma emoção ou sensação, uma música, um som, uma pessoa, uma palavra.
Este exercício de escuta pode ser feito a qualquer altura e em qualquer lugar. Costumo fazê-lo de manhã, porque decidi levantar-me mais cedo que todos cá em casa para começar o meu dia da melhor forma que consigo. Fiz um esforço consciente para conseguir ter este tempo de quietude de manhã, mas nem sempre consigo - aqueles dias em que me deito mais tarde na noite anterior, ou aquelas manhãs em que sinto que preciso mesmo de mais uma hora de sono, como acontece em alguns dias do ciclo menstrual. Nessas ocasiões faço um esforço por arranjar um tempinho durante o dia, à hora do almoço, antes de me deitar, enquanto espero que os miúdos adormeçam, e até já fiz dentro do carro.
Gosto de praticar a escuta durante, pelo menos, 15 minutos, mas no geral faço com o tempo que tenho disponível. Quer sejam 5 ou 2 minutos, vale sempre a pena.

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